Propósito não é profissão!

Certa vez, em uma aula de Projeto de Vida, perguntei a uma estudante:

– Qual é o seu propósito?

Ela prontamente me respondeu:

– Eu quero ser médica!

Logo após sua resposta, disse a ela:

– Medicina é uma profissão, não um propósito!

A sala de aula não entendeu muito bem minha afirmação. Permiti que o silêncio imperasse na sala por alguns segundos. A estudante, sem entender muito bem, me perguntou:

– Como assim, professor? Eu penso nisso desde que era criança!

O espanto da estudante e de seus colegas de turma evidenciou um traço de nosso tempo: os estudantes não sabem a diferença entre profissão e propósito de vida. Por causa dessa incompreensão, a busca pela profissão está apagando o desenvolvimento e descoberta de um propósito.

A forma como as famílias, os professores e a sociedade lidam com essa questão apenas reforça esse abismo. Os estudantes de ensino médio são constantemente indagados com a pergunta: o que você quer fazer da vida? Essa indagação é, geralmente, uma forma de perguntar qual é o curso universitário do interesse do jovem.

Esse tipo de abordagem tem promovido o engrandecimento da profissão e do curso acadêmico em detrimento do propósito. Como consequência, há uma crise no ensino superior. Estudos recentes apontam que apenas 18% dos jovens entre 18 e 24 anos estão matriculados no ensino superior[1]. Desse total, metade desiste ou troca de curso universitário durante o primeiro ano[2]. Dos desistentes, cerca de 85% dos estudantes fizeram o ensino médio em escolas particulares.

Esses dados mostram que os jovens enfrentam uma crise de propósito. Eles têm se matriculado no ensino superior por motivos diversos, muitas vezes o ingresso é fruto de pressão familiar ou social. Poucos escolhem sua profissão ou curso universitário em correspondência ao seu propósito.

A descoberta e desenvolvimento de um propósito deve, necessariamente, começar com perguntas mais profundas da ordem da existência: quem é você? O que você faz bem? Quais são os seus interesses pessoais?

O nome de um curso escolhido diz pouco sobre o indivíduo. Uma resposta que é uma palavra (direito, administração…) ou apenas uma breve sentença (relações internacionais, engenharia de alimentos…) promove um reducionismo no processo de orientação dos jovens.

A profissão ou curso universitário deve ser o cume de um processo pessoal de compreensão de si, não o elemento central na jornada do desenvolvimento humano. Esse processo resultará na delimitação do propósito. William Damon, professor de Educação e diretor do Centro de Pesquisas da Adolescência na Universidade de Stanford, definiu um propósito de vida como “uma intenção estável e generalizada de alcançar algo que é, ao mesmo tempo, significativo para o eu e gera consequências no mundo além do eu[3]”.

Uma vez delimitada, essa intenção estável mobiliza os indivíduos para encontrarem os meios de alcançá-la. A formação acadêmica ou técnica é um meio possível para o desenvolvimento de intenções estáveis. A clareza da escolha gera estabilidade (ou perenidade), ou seja, quando o propósito está claro para o indivíduo, ele se compromete com ele por um longo tempo. Damon reforça esse princípio ao afirmar que, necessariamente, um propósito se mantém ao longo de muitos anos.

As famílias, escolas e sociedade exercem um papel fundamental na lapidação dos propósitos dos jovens. Afinal, as consequências de um propósito sempre têm um impacto para além do “eu”. Os relacionamentos intergeracionais são fundamentais, pois a emulação é um padrão observado na existência humana. Cabe aos pais, professores, pastores, mentores… inspirar os jovens para que entendam qual é o seu propósito de vida.

A conversa com a estudante não terminou no espanto. Após o choque inicial, perguntei à minha estudante:

– Por que você quer fazer medicina? O que te levou a escolher esse curso?

Prontamente a menina me respondeu:

– Professor, eu quero me especializar em algo relacionado com o cérebro humano. Durante toda a minha infância e adolescência, testemunhei meu pai sofrer com profundas crises de enxaqueca. Nenhum médico conseguia ajudar o meu amado pai com suas dores. Essa realidade – continuou a jovem – impactou minha infância. Muitas vezes fui privada de brincar com o meu pai, pois ele se encontrava em uma crise aguda de enxaqueca. Essa condição o deixava triste porque ele queria brincar comigo. Eu quero ser médica para encontrar formas de ajudar pessoas a não sofrerem o mesmo que o meu pai sofreu e ainda sofre. Quero dedicar minha vida para ajudar pessoas que sofrem de enxaqueca a melhorarem seus relacionamentos ao reduzir a intensidade e a ocorrência de suas crises.

Assim que a estudante terminou de falar, o silêncio imperou mais uma vez, dessa vez devido à comoção, não ao espanto. Segundos após a fala da jovem, afirmei diante dela e de todos os seus colegas:

– Esse é o seu propósito! A medicina é o meio de realizá-lo!

O exercício da docência deve ser encarado como um ato de orientação e lapidação de propósitos, assim como um cuidado intencional dos afetos.


[1] MAIA, Rodrigo. Apenas 18,1% dos jovens de 18 a 24 anos estão matriculados no ensino superior. CNN Brasil, 8 de junho de 2021. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/apenas-18-1-dos-jovens-de-18-a-24-anos-estao-matriculados-no-ensino-superior/

[2] ESTADO DE MINAS Educação. Índice de troca ou abandono de curso em faculdades equivale à metade dos ingressantes. 17 de julho de 2018. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/especiais/educacao/2018/07/17/internas_educacao,973969/indice-de-troca-ou-abandono-de-curso-em-faculdades-equivale-a-metade-d.shtml

[3] DAMON, Willian. O que o jovem quer da vida? Como pais e professores podem orientar e motivar os adolescentes. Summus editorial, São Paulo, 2009. p. 53.