Como alfabetizar na perspectiva da ciência cognitiva?

Aprender a ler parece ser algo simples e natural, assim como falar, ouvir e andar. Mas, se fosse uma habilidade fácil de ser adquirida, não teríamos resultados tão ruins nas avaliações nacionais e internacionais de desempenho escolar. Por exemplo, na última avaliação do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) realizada em 2022, o Brasil teve um desempenho abaixo da média mundial em leitura, matemática e ciências. Ainda em leitura, o PISA de 2022 mostrou que 50% dos estudantes brasileiros tiveram baixo desempenho, enquanto apenas 2% atingiram alto desempenho (BRASIL, 2023).

Esse cenário nacional de mau desempenho acadêmico em leitura já foi vivenciado por outros países, como França, Inglaterra e Estados Unidos na década de 90 (INSTITUTO ALFA E BETO, 2019). Mas, a solução encontrada por eles foi buscar práticas baseadas em evidências para a alfabetização pautadas nas ciências cognitivas.

As ciências cognitivas são um recente campo interdisciplinar que estuda a relação entre mente e cérebro, com ênfase no processamento de informações, incluindo pesquisas de outras disciplinas, como psicologia, inteligência artificial, linguística, filosofia, antropologia e as neurociências (STRUBE, 2001). Baseada em estudos das ciências cognitivas, especificamente na Neurociência cognitiva e na Psicologia cognitiva, surgiu um novo campo de estudos há pelo menos 30 anos chamado Ciência da Leitura Ciência ou simplesmente Cognitiva da Leitura (DEHAENE, 2012; MALUF; CARDOSO-MARTINS, 2013).

A ciência da leitura estuda os processos linguísticos, cognitivos e cerebrais requeridos no ensino e na aprendizagem das habilidades de ler e escrever, buscando analisar como o cérebro processa e se modifica a partir da aquisição de tais habilidades (DEHAENE, 2011; SARGIANI; MALUF, 2018). Sabemos que há diferentes formas de se alfabetizar, sendo algumas mais eficazes que outras (BRASIL, 2019). A ciência da leitura apresenta o conjunto de evidências mais robustas sobre como as pessoas aprendem a ler e a escrever e como é possível ensiná-las de modo mais eficaz (SNOWLING; HULME, 2013). De fato, a maioria dos países que melhoraram a alfabetização nas últimas décadas fundamentaram suas políticas públicas nas evidências mais atuais da ciência cognitiva da leitura (ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS, 2011).

Mas, o que é alfabetização para a ciência cognitiva da leitura? Trata-se do ensino das habilidades de leitura e de escrita em um sistema alfabético. Ou seja, o ensino do modo de representação gráfica que representa sons por meio de letras (MORAIS, 2014). Estudos da ciência da leitura descobriram que este processo não surge de maneira natural ou espontânea em seres humanos, mas que precisam ser ensinados de maneira explícita e sistemática para serem efetivos (DEHAENE, 2011).

Uma das explicações para tais conclusões é a chamada “Teoria da Reciclagem Neuronal”, proposta inicialmente por Dehaene e Cohen (2007). De maneira geral, esta teoria explica que como geneticamente o cérebro não foi pré-programado para a leitura, uma vez que é um artefato cultural, é necessária uma reciclagem de neurônios para processarem esta nova tarefa. Assim, neurônios pré-programados para reconhecerem faces, se reciclam para serem capazes de reconhecer letras (DEHAENE, COHEN, 2007; DEHAENE, 2011; DEHAENE, 2012). Desta forma, descobriu-se que “aprende a ler consiste em acessar, através da visão, as áreas da linguagem falada” e que “a aprendizagem da leitura modifica as redes corticais!” (DEHAENE, 2012, p. 149).

A área cerebral responsável pela identificação visual das letras localiza-se na região occípito-temporal ventral esquerda e chama-se “Forma Visual das Palavras – FVP” ou “caixa das palavras”. A FVP está presente em todos os leitores, em todas as culturas, na mesma região cerebral e identifica a mesma letra independentemente da posição, do tamanho e da caixa (alta ou baixa) da palavra (DEHAENE, 2012).

A partir da FVP o leitor poderá ler as palavras de duas formas: decodificando ou pela leitura direta. A decodificação envolve a capacidade de converter as letras em sons, sem acessar o significado concomitantemente. Chamamos este caminho de rota fonológica (DEHAENE, 2012). Há evidências de que “o próprio processo fonológico possibilita a posterior leitura lexical” (SHARE, 1995). Já a rota/leitura lexical possibilita a passagem do escrito ao significado, não sendo necessária a sua conversão grafofonêmica (DEHAENE, 2012). Assim, inicialmente é necessário saber as conversões grafofonêmicas para conseguir utilizar a rota fonológica e, quanto mais se utiliza dela, as palavras vão sendo armazenadas no léxico mental, que possibilitará a posterior leitura lexical.

Por fim, compreendendo melhor os processos subjacentes à aquisição da habilidade de ler pelo cérebro, compreende-se melhor por que algumas estratégias de alfabetização são mais eficazes do que outras. Estratégias que ensinam de forma explícita e sistemática as conversões grafofonêmicas tendem a ser mais eficazes do que as que não o fazem (DIAS; SEABRA, 2011), pois respeitam a forma como o cérebro aprende a ler (SIGMAN et al., 2014).

Então, como alfabetizar na perspectiva da ciência cognitiva? Deve-se inicialmente garantir que os processos mais básicos estejam íntegros, como aprender a falar (além de outras habilidades ligadas às questões sensoriais de audição, por exemplo). O repertório linguístico de compreensão e produção de fala são extremamente importantes para o desenvolvimento da demais habilidades mais refinadas de linguagem, como a consciência fonológica, a memória fonológica e a nomeação automática rápida. Tais habilidades fazem parte do segundo conjunto de habilidades consideradas pré-requisitos para a posterior alfabetização (PAZETO, LEÓN, SEABRA, 2017).

Em segundo lugar, deve-se garantir a estimulação dos seis os pilares da alfabetização: consciência fonêmica, instrução fônica sistemática, vocabulário, fluência em leitura oral, compreensão de textos e produção de escrita, de forma progressiva, explícita e sistemática (BRASIL, 2019). Evidências sugerem inclusive que a aprendizagem da leitura deve ser por meio da aprendizagem sem erro, ou seja, ensinando sempre dentro do que o aluno já sabe para depois ir aumentando o grau de dificuldade (INSTITUTO ALFA E BETO, 2019).

Esclarece-se que as instruções fônicas tendem a ser mais eficazes que as demais para alfabetizar, pois facilitam a reciclagem neuronal (SCLIAR-CABRAL, 2010; DIAS; SEABRA, 2011; SIGMAN et al., 2014). Para tanto, deve-se organizar um plano de ensino que contemple um conjunto selecionado de relações grafofonêmicas, organizadas em sequência lógica, com grau de dificuldade crescente. Deve-se trabalhar com no máximo duas letras por dia, preferencialmente intercalando com habilidades de consciência fonológica (SEABRA; CAPOVILLA, 2021).

Referências

ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS. Aprendizagem infantil: uma abordagem da neurociência, economia e psicologia cognitiva. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Ciências, 2011.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Alfabetização. PNA Política Nacional de Alfabetização/Secretaria de Alfabetização [recurso eletrônico] – Brasília: MEC, SEALF, 2019.

BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Notas sobre o Brasil no Pisa 2022 [recurso eletrônico] – Brasília, DF: INEP, 2023.

DEHAENE, S. Apprendre à lire: des sciences cognitives à la salle de classe. [S.l.]: Odile Jacob, 2011.

DEHAENE, Stanislas. Os neurônios da leitura. Porto Alegre: Penso, 2012.

DEHAENE, Stanislas; COHEN, Laurent. Cultural recycling of cortical maps. Neuron, v. 56, n. 2, p. 384-398, 2007.

INSTITUTO ALFA E BETO. Educação Infantil: Novos Caminhos. Relatório do Seminário realizado pela Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados [recurso eletrônico] – Brasília: Câmara dos Deputados, 2019.

MALUF, Maria Regina; CARDOSO-MARTINS, Cláudia. Alfabetização no século XXI: Como se aprende a ler e a escrever. Penso Editora, 2013.

MORAIS, J. Alfabetizar para a democracia. Porto Alegre: Penso Editora, 2014.

PAZETO, Talita de Cássia Batista; LEÓN, Camila Barbosa Riccardi; SEABRA, Alessandra Gotuzo. Avaliação de habilidades preliminares de leitura e escrita no início da alfabetização. Revista Psicopedagogia, v. 34, n. 104, p. 137-147, 2017.

SARGIANI, R. de A.; MALUF, M. R. Linguagem, cognição e educação infantil: contribuições da psicologia cognitiva e das neurociências. Psicologia Escolar e Educacional, v. 22, n. 3, p. 477-484, 2018.

SCLIAR-CABRAL, Leonor. Evidências a favor da reciclagem neuronal para a alfabetização. Letras de Hoje, v. 45, n. 3, 2010.

SEABRA, A.G.; CAPOVILLA, Fernando Cesar. Alfabetização: Método fônico. 6. ed. São Paulo: Editora Memnon, 2021. v. 1. 332p.

SEBRA, Alessandra et al. Métodos de alfabetização: delimitação de procedimentos e considerações para uma prática eficaz. Rev. Psicopedagogia;28(87):306-320, 2011.

SHARE, David L. Phonological recoding and self-teaching: Sine qua non of reading acquisition. Cognition, v. 55, n. 2, p. 151-218, 1995.

SIGMAN, Mariano et al. Neuroscience and education: prime time to build the bridge. Nature neuroscience, v. 17, n. 4, p. 497-502, 2014.

SNOWLING, M. J.; HULME, C. A ciência da leitura. Porto Alegre: Penso Editora, 2013.

STRUBE, G. Cognitive science: Overview. In N.J. Smelser & P.B Baltes. (Eds.), International encyclopedia of the social and behavioral sciences (pp. 2158-2166). Amsterdam: Elsevier, 2001.